Construindo competências
Entrevista com Philippe Perrenoud,
Universidade de Genebra
Paola Gentile e Roberta Bencini
O objetivo da escola não deve ser
passar conteúdos,
mas preparar - todos - para a vida em uma sociedade moderna
mas preparar - todos - para a vida em uma sociedade moderna
- 1. O que é
competência ? Poderia me dar alguns exemplos ?
Competência é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos
cognitivos (saberes, capacidades, informações etc) para solucionar com
pertinência e eficácia uma série de situações. Três exemplos:
· Saber orientar-se
em uma cidade desconhecida mobiliza as capacidades de ler um mapa,
localizar-se, pedir informações ou conselhos ; e os seguintes
saberes : ter noção de escala, elementos da topografia ou referências
geográficas.
· Saber curar uma
criança doente mobiliza as capacidades de observar sinais fisiológicos, medir a
temperatura, administrar um medicamento ; e os seguintes saberes :
identificar patologias e sintomas, primeiros socorros, terapias, os riscos, os
remédios, os serviços médicos e farmacêuticos.
· Saber votar de
acordo com seus interesses mobiliza as capacidades de saber se informar,
preencher a cédula ; e os seguintes saberes : instituições políticas,
processo de eleição, candidatos, partidos, programas políticos, políticas
democráticas etc.
Esses são exemplos banais. Outras competências estão ligadas a contextos
culturais, profissionais e condições sociais. Os seres humanos não vivem todos
as mesmas situações. Eles desenvolvem competências adaptadas a seu mundo. A selva
das cidades exige competências diferentes da floresta virgem, os pobres têm
problemas diferentes dos ricos para resolver. Algumas competências se
desenvolvem em grande parte na escola. Outras não.
- 2. De onde vem a
idéia de competência na educação ? Quando começou a ser
empregada ?
Quando a escola se preocupa em formar competências, em geral dá
prioridade a recursos. De qualquer modo, a escola se preocupa mais com
ingredientes de certas competências, e bem menos em colocá-las em sinergia nas
situações complexas. Durante a escolaridade básica, aprende-se a ler, a
escrever, a contar, mas também a raciocinar, explicar, resumir, observar,
comparar, desenhar e dúzias de outras capacidades gerais. Assimila-se
conhecimentos disciplinares, como matemática, história, ciências, geografia
etc. Mas a escola não tem a preocupação de ligar esses recursos a certas
situações da vida. Quando se pergunta porque se ensina isso ou aquilo, a
justificativa é geralmente baseada nas exigências da seqüência do curso :
ensina-se a contar para resolver problemas ; aprende-se gramática para
redigir um texto. Quando se faz referência à vida, apresenta-se um lado muito
global : aprende-se para se tornar um cidadão, para se virar na vida, ter
um bom trabalho, cuidar da sua saúde. A onda atual de competências está
ancorada em duas constatações :
1. A transferência e a mobilização das capacidades e dos conhecimentos
não caem do céu. É preciso trabalhá-las e treiná-las. Isso exige tempo, etapas
didáticas e situações apropriadas.
2. Na escola não se trabalha suficientemente a transferência e a
mobilização não se dá tanta importância a essa prática. O treinamento, então, é
insuficiente. Os alunos acumulam saberes, passam nos exames, mas não conseguem
mobilizar o que aprenderam em situações reais, no trabalho e fora dele
(família, cidade, lazer etc)
Isso não é dramático para quem faz estudos longos. É mais grave para
quem freqüenta a escola somente por alguns anos. Formulando-se mais
explicitamente os objetivos da formação em termos de competência, luta-se
abertamente contra a tentação da escola :
· de ensinar por
ensinar, de marginalizar as referências às situações da vida ;
· e de não perder
tempo treinando a mobilização dos saberes para situações complexas.
A abordagem por competências é uma maneira de levar a sério, em outras
palavras, uma problemática antiga, aquela de transferir conhecimentos.
- 3. Quais as
competências que os alunos devem ter adquirido ao terminar a escola ?
É uma escolha da sociedade, que deve ser baseada em um conhecimento amplo
e atualizado das práticas sociais. Para elaborar um conjunto de competências,
não basta nomear uma comissão de redação. Certos países contentaram-se em
reformular os programas tradicionais, colocando um verbo de ação na frente dos
saberes disciplinares. Onde se lia "ensinar o teorema de Pitágoras",
agora lê-se "servir-se do teorema de Pitágoras para resolver problemas de
geometria". Isso é maquiagem. A descrição de competências deve partir da
análise de situações, da ação, e disso derivar conhecimentos. Há uma tendência
em ir rápido demais em todos os países que se lançam na elaboração de programas
sem dedicar tempo em observar as práticas sociais, identificando situações nas
quais as pessoas são e serão verdadeiramente confrontadas. O que sabemos verdadeiramente
das competências que têm necessidade, no dia-a-dia, um desempregado, um
imigrante, um portador de deficiência, uma mãe solteira, um dissidente, um
jovem da periferia ? Se o sistema educativo não perder tempo reconstruindo
a transposição didática, ele não questionará as finalidades da escola e se
contentará em verter antigos conteúdos dentro de um novo recipiente. Na
formação profissional, se estabelece uma profissão referencial na análise de
situações de trabalho, depois se elaborou um referencial de competências, que
fixa os objetivos da formação. Nada disso acontece na formação geral. Por isso,
sob a capa de competências, dá-se ênfase a capacidades sem contexto.
Resultado : conserva-se o essencial dos saberes necessários aos estudos
longos, e os lobbies disciplinares ficam satisfeitos.
- 4. O sr. poderia
dar um exemplo daquilo que é preciso fazer ?
Eu tentei um exercício para identificar as competências fundamentais
para a autonomia das pessoas. Cheguei a oito grandes categorias : saber
identificar, avaliar e valorizar suas possibilidades, seus direitos, seus
limites e suas necessidades ; saber formar e conduzir projetos e
desenvolver estratégias, individualmente ou em grupo ; saber analisar
situações, relações e campos de força de forma sistêmica ; saber cooperar,
agir em sinergia, participar de uma atividade coletiva e partilhar
liderança ; saber construir e estimular organizações e sistemas de ação
coletiva do tipo democrático ; saber gerenciar e superar conflitos ;
saber conviver com regras, servir-se delas e elaborá-las ; saber construir
normas negociadas de convivência que superem diferenças culturais. Em cada uma
dessas grandes categorias, deveria ainda especificar concretamente grupos de
situações. Por exemplo : saber desenvolver estratégias para manter o
emprego em situações de reestruturação de uma empresa. A formulação de
competências se afasta, então, das abstrações ideologicamente neutras. De
pronto, a unanimidade está ameaçada e reaparece a idéia que os objetivos da
escolaridade dependem de uma escolha da sociedade.
- 5. A Unesco fez
ou seguiu alguma experiência antes de recomendar essas mudanças dentro dos
currículos e nas práticas da educação ?
Eu não tenho uma resposta precisa. O movimento é internacional. Nos
países em desenvolvimento as metas não são as mesmas que nos países hiper
escolarizados. A Unesco observa que dentre as crianças que têm chance de ir à
escola somente alguns anos, uma grande parte sai sem saber utilizar as coisas
que aprenderam.
É preciso parar de pensar a escola básica como uma preparação para os
estudos longos. Deve-se enxergá-la, ao contrário, como uma preparação de todos
para a vida, aí compreendida a vida da criança e do adolescente, que não é
simples.
- 6. Nesse
contexto, quais são as mudanças no papel do professor ?
É inútil exigir esforços sobre humanos aos professores, se o sistema
educativo não faz nada além de adotar a linguagem das competências, sem nada
mudar de fundamental. O mais profundo indício de uma mudança em profundidade é
a diminuição de peso dos conteúdos disciplinares e uma avaliação formativa e
certificativa orientada claramente para as competências. Como eu disse, as
competências não dão as costas para os saberes, mas não se pode pretender
desenvolvê-las sem dedicar o tempo necessário para colocá-las em prática. Não
basta juntar uma situação de transferência no final de cada capítulo de um
curso convencional. Se o sistema muda &emdash; não somente reformulando
seus programas em termos de desenvolvimento de competências verdadeiras, mas liberando
disciplinas, introduzindo os ciclos de aprendizagem plurianuais ao longo do
curso, chamando para a cooperação profissional, convidando para uma pedagogia
diferenciada &emdash; então o professor deve mudar sua representação e sua
prática.
- 7. O que o professor
deve fazer para modificar sua prática ?
Para desenvolver competências é preciso, antes de tudo, trabalhar por
problemas e por projetos, propor tarefas complexas e desafios que incitem os
alunos a mobilizar seus conhecimentos e, em certa medida, completá-los. Isso
pressupõe uma pedagogia ativa, cooperativa, aberta para a cidade ou para o
bairro, seja na zona urbana ou rural. Os professores devem parar de pensar que
dar o curso é o cerne da profissão. Ensinar, hoje, deveria consistir em
conceber, encaixar e regular situações de aprendizagem, seguindo os princípios
pedagógicos ativos construtivistas. Para os adeptos da visão construtivista e
interativa da aprendizagem, trabalhar no desenvolvimento de competências não é
uma ruptura. O obstáculo está mais em cima : como levar os professores
habituados a cumprir rotinas a repensar sua profissão ? Eles não
desenvolverão competências se não se perceberem como organizadores de situações
didáticas e de atividades que têm sentido para os alunos, envolvendo-os, e, ao
mesmo tempo, gerando aprendizagens fundamentais.
- 8. Quais são as
qualidades profissionais que o professor deve ter para ajudar os alunos a
desenvolver competências ?
Antes de ter competências técnicas, ele deveria ser capaz de identificar
e de valorizar suas próprias competências, dentro de sua profissão e dentro de
outras práticas sociais. Isso exige um trabalho sobre sua própria relação com o
saber. Muitas vezes, um professor é alguém que ama o saber pelo saber, que é
bem sucedido na escola, que tem uma identidade disciplinar forte desde o ensino
secundário. Se ele se coloca no lugar dos alunos que não são e não querem ser
como ele, ele começará a procurar meios interessar sua turma por saberes não
como algo em si mesmo, mas como ferramentas para compreender o mundo e agir
sobre ele. O principal recurso do professor é a postura reflexiva, sua
capacidade de observar, de regular, de inovar, de aprender com os outros, com
os alunos, com a experiência. Mas, com certeza, existem capacidades mais
precisas :
· saber gerenciar a
classe como uma comunidade educativa ;
· saber organizar o
trabalho no meio dos mais vastos espaços-tempos de formação (ciclos, projetos
da escola) ;
· saber cooperar com os
colegas, os pais e outros adultos ;
· saber conceber e dar
vida aos dispositivos pedagógicos complexos ;
· saber suscitar e
animar as etapas de um projeto como modo de trabalho regular ;
· saber identificar e
modificar aquilo que dá ou tira o sentido aos saberes e às atividades
escolares ;
· saber criar e
gerenciar situações problemas, identificar os obstáculos, analisar e reordenar
as tarefas ;
· saber observar os
alunos nos trabalhos ;
· saber avaliar as
competências em construção.
- 9. O que o
professor pode fazer com as disciplinas ? Como empregá-las dentro
deste novo conceito ?
Não se trata de renunciar às disciplinas, que são os campos do saber
estruturados e estruturantes. Existem competências para dominantes
disciplinares, para se trabalhar nesse quadro. No ensino primário, é preciso,
entretanto, preservar a polivalência dos professores, não
"secundarizar" a escola primária. No ensino secundário, pode-se
desejar a não compartimentalização precoce e estanque, professores menos
especializados, menos fechados dentro de uma só disciplina, que dizem ignorar
as outras disciplinas. É importante ainda não repartir todo o tempo escolar
entre as disciplinas, deixar espaços que favoreçam as etapas do projeto, as
encruzilhadas interdisciplinares ou as atividades de integração.
- 10. Como fazer
uma avaliação em uma escola orientada para o desenvolvimento de
competências ?
Não se formará competências na escolaridade básica a menos que se exija
competências no momento da certificação. A avaliação é o verdadeiro programa,
ela indica aquilo que conta. É preciso, portanto, avaliar seriamente as competências.
Mas isso não pode ser feito com testes com lápis e papel. Pode-se inspirar nos
princípios de avaliação autêntica elaborada por Wiggins. Para ele a
avaliação :
· não inclui nada
além das tarefas contextualizadas ;
· diz respeito a
problemas complexos ;
· deve contribuir
para que os estudantes desenvolvam ainda mais suas competências ;
· exigir a utilização
funcional dos conhecimentos disciplinares ;
· não deve haver
nenhum constrangimento de tempo fixo quando da avaliação das
competências ;
· a tarefa e suas
exigências são conhecidas antes da situação de avaliação ;
· exige um certa
forma de colaboração entre os pares ;
· leva em
consideração as estratégias cognitivas e metacognitivas utilizadas pelos
estudantes ;
· a correção não deve
levar em conta o que não sejam erros importantes na ótica da construção de
competências.
- 11. Em quanto
tempo pode-se ver os resultados dessas mudanças no sistema de
ensino ?
Antes de avaliar as mudanças, melhor colocá-las em operação, não somente
nos textos, mas no espírito e nas práticas. Isso levará anos se for um trabalho
sério. Pior seria acreditar que as práticas de ensino e aprendizagem mudam por
decreto. As mudanças exigidas passarão por uma espécie de revolução cultural,
que será vivida primeiro pelos professores, mas também pelos alunos e seus
pais. Quando as práticas forem mudadas em larga escala, a mudança exigirá ainda
anos para dar frutos visíveis, pois será preciso esperar mais de uma geração de
estudantes que tenha passado por todos os ciclos. Enquanto se espera, melhor
implementar e acompanhar as mudanças do que procurar provas prematuras de
sucesso.
- 12. O que uma
reforma como essa no ensino pode fazer por um país como o Brasil ?
Seu país confronta-se com o desafio de escolarização de crianças e
adolescentes e da formação de professores qualificados em todas as regiões. E
também uma desigualdade frente à escola, com a reprovação e o abandono. A
abordagem por competências não vai resolver magicamente esses problemas. Mais
grave seria &emdash; já que os programas estão sendo reformados, tirar
recursos de outras frentes. Somente as estratégias sistêmicas são defensáveis.
Entretanto, não vamos negligenciar três suportes da abordagem por competências,
caso ela atenda suas ambições : ela pode aumentar o sentido de trabalho
escolar e modificar a relação com o saber dos alunos em dificuldade ;
favorecer as aproximações construtuvistas, a avaliação formativa, a pedagogia
diferenciada, que pode facilitar a assimilação ativa dos saberes ; pode
colocar os professores em movimento, incitá-los a falar de pedagogia e a
cooperar no quadro de equipes ou de projetos do estabalecimento escolar. Por
isso, é sensato integrar desde já as abordagens por competências à formação
&emdash; inicial e contínua &emdash; e à identidade profissional dos
professores. Não nos esqueçamos que, no final das contas, o objetivo principal
é democratizar o acesso ao saber e às competências. Todo o resto não é senão um
meio de atingir esse objetivo.
- 13. O sr. agora
está trabalhando em algum novo projeto ou assunto ?
Eu continuo a trabalhar na transposição didática a partir das práticas,
sobre os dispositivos de construção de competências, tanto na escola como na
formação profissional no setor terciário da economia. Isso anda paralelo à uma
reflexão sobre os ciclos de aprendizagem, a individualização dos percursos, a
aproximação modular dos curriculos. Eu trabalho também com estratégias de
mudanças e suas aberrações conhecidas, como demagogia, precipitação, busca de
lucros políticos a curto prazo, pesos desmedidos de lobbies disciplinares,
simplificação, incapacidade de orientar e de negociar mudanças complexas
distribuídas ao longo de pelo menos dez anos, dificuldade de definir uma justa
autonomia dos estabelecimentos.
Para
saber mais
Perrenoud, Ph. (1994) Práticas pedagógicas, profissão docente e
formação : perspectivas sociológicas, Lisboa, D. Quixote.
Perrenoud, Ph. (1995) Ofício de aluno e sentido do trabalho
escolar, Porto, Porto Editora.
Perrenoud, Ph. (1999) Avaliação. Da Excelência à Regulação das Aprendizagens,
Porto Alegre, Artmed Editora.
Perrenoud, Ph. (1999) Construir as Competências desde a Escola,
Porto Alegre, Artmed Editora.
Perrenoud, Ph. (1999) Pedagogia Diferenciada, Porto Alegre,
Artmed Editora.
Perrenoud, Ph. (2000) Dez Novas Competências para Ensinar,
Porto Alegre, Artmed Editora.
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